Problemas de coagulação: quando a homocisteína elevada deve ser levada em conta
Homocisteína avalia o risco cardíaco, mas também indica eventual tendência à formação de microcoágulos.
[Ao longo dos próximos dias, republicaremos alguns artigos que saíram no nosso antigo blog OutraMedicina, ao qual, recentemente, me foi vetado o acesso no sentido de publicar novos artigos; de toda forma, em breve retomaremos a publicação de artigos novos e inéditos por aqui, no OutraMedicina2024]
Suponhamos um paciente que forma equimoses facilmente, mesmo sem esbarrar fortemente em alguma coisa e que, no exame laboratorial seus testes de coagulação [coagulograma] tendem a apontar para tempo aumentado de coagulação; e que também se trata de uma pessoa que sangra facilmente [dificuldade de formar aquele coágulo que iria deter o sangramento] e forma pequenas manchas vermelhas ou roxas sob a pele [petéquias]. [A]
Certamente, a primeira coisa que ela pode pensar é que falta vitamina K, que existe deficiência da vitamina K [vitamina K2MK4]. Não está errada.
Essa deficiência é muito comum nas pessoas que não têm o costume de consumir, regularmente, fígado de boi, fonte notável da K e das demais vitaminas lipossolúveis.
Tais pessoas apresentam coagulação mais lenta [C]. Por outro lado, como medir a K em laboratório é difícil e demorado, eventualmente o que se vê são essas pessoas fazendo seu “teste terapêutico” com a vitamina K. Usando-a por um tempo – de preferência com a D - e vendo se melhora nos testes laboratoriais [coagulograma]. Há quem use 6 mg da vitamina K2MK4 por um tempo, para então checar eventuais melhoras ao final do período. Talvez dê certo se tais carências forem a origem do problema.
Mas pode não ser carência da K. Aquela dificuldade de coagulação pode ter outras causas. Uma queda no número de plaquetas pode causar problemas de coagulação. Mas também câncer no fígado e outras doenças hepáticas; ou, na UTI, uma coagulação vascular disseminada; também uso de drogas do tipo inibidores da angiogênese, anticoagulantes; e a presença da doença hemofílica; etc. Pode ser apenas dominância estrogênica. Não é nosso tema aqui exaurir ou examinar as demais causas de facilidade ao sangramento [dificuldade de formar coágulos].
Apenas queremos, nesta nota, chamar a atenção para outro tipo de problema de coagulação que se expressa na tendência a formar microcoágulos. Um problema pouco falado e cuja eventual causa nem sempre é lembrada pelo doutor na hora do diagnóstico: a homocisteína alta ou hiperhomocisteinemia.
Provavelmente todos já ouviram falar na homocisteína, um aminoácido tóxico, medido laboratorialmente no sangue, em geral para se avaliar o risco cardiovascular daquela pessoa.
Em homens, níveis acima de 6-7 micromol por litro de homocisteína são já anormais, já devem ser considerados altos [alguns laboratórios falam em homocisteína alta, em geral, apenas quando ela sobe acima de 15 ; mas esta parece ser mais uma medida estatística feita a partir de uma população doente; pode ser mais adequado não se fiar em valores assim e tratar de evitar, cronicamente, uma homocisteína acima de 7].
Voltemos ao ponto. Existem trabalhos mostrando claramente que quando a homocisteína sobe, podem aparecer problemas para a adequada coagulação.
E observou-se que níveis moderadamente altos de homocisteína alteram o sistema de coagulação em determinada direção; verificou-se que a homocisteína alta impacta e inibe vários mecanismos anticoagulantes que são mediados pelo endotélio vascular.
O endotélio opera impedindo que se formem coágulos. A homocisteína alta faz o contrário. Induz sua formação. Agride o endotélio, induz microcoágulos e microlesões.
Hiperhomocisteinemia aumenta atividade dos fatores XII e V, ativa a via extrínseca de coagulação, inibe a atividade da trombomodulina. Tudo isso leva à propensão a fenômenos trombóticos, mas também aterogênicos. Tais processos estão bem explicados por UEHARAL [B].
Aquela pessoa com homocisteinemia, portanto, desenvolve uma tendência a formar microcoágulos ali no endotélio pela ação deletéria da homocisteína – um aminoácido tóxico, como foi dito -, que irá inibir a ação anticoágulos própria do entotélio.
Como nós já sabemos que o hipotireoidismo promove a elevação da homocisteína, fácil deduzir que pessoas com essa disfunção tireoidiana poderão apresentar distúrbios de coagulação do tipo propensão a coágulos e aterogênese, portanto, doença cardiovascular . Por causa da doença tireoidiana. Que torna mais lenta a via bioquímica de eliminação da homocisteína [o metabolismo de um carbono], da sua remetilação.
Fica o lembrete: o corpo é uma totalidade, onde coagulação está interconectada com outros processos, que passam pelo sistema cardiovascular, alimentação [que assegure a vitamina K, D etc] e capacidade ótima de produção da energia corporal [tireoide].
Isso significa, por exemplo, se a pessoa tem diagnóstico de hipotireoidismo, é de suma importância não se deixar acomodar a essa doença crônica silenciosa [já que aparentemente é uma doença vaga, que não ameaça imediatamente a pessoa ou que vem de uma glândula pouco conhecida ou valorizada; não pense assim].
Na verdade há que se preocupar. E prevenir.
Pesquisadores já demonstraram a presença, em pacientes com hipotireoidismo, de fatores de risco cardiovascular, de arteriosclerose, tipo hiperhomocisteinemia, PCR alto, endurecimento arterial e disfunção endotelial. E mostraram que a concentração plasmática de homocisteína – igualmente fator de risco independente para aterosclerose – costuma ficar moderadamente elevada em pacientes com hipotireoidismo e, eventualmente decai quando se trata a tireoide [D].
Ou, também pode ser carência do complexo B [vitamina B2, B9, B6, B12] ou de glicina [baixo consumo de gelatina animal]. Tais carências repercutem no metabolismo de um carbono, de remetilação da homocisteína, aumentando-a.
Mas o hipotireoidismo é chave. Dessa forma, para as pessoas que se preocupam com prevenção, é estratégico não deixar que o hipotireoidismo evolua para a cronicidade; caso contrário, começarão a aparecer problemas que o doutor eventualmente não vai conectar ou vai demorar a diagnosticar.
Como é o caso aqui citado, de uma tendência à formação de microcoágulos por conta de uma tireoide metabolicamente pouco ativa [hipotireoidismo], uma disfunção glandular que tende a engendrar uma homocisteína mais alta no sangue; com consequente agressão desta ao sistema vascular.
Seja como for, da próxima vez que fizer seu coagulograma no laboratório, não esqueça de incluir a homocisteína [e o fibrinogênio, também o Dímero D, por razões que explicaremos em outra nota]. E se suspeitar de hipotireoidismo, nunca deixe de incluir esses exames, eles também são elucidativos.
G Dantas [Publicado originalmente em Brasília 3-4-23]
As informações aqui presentes não pretendem servir para uso diagnóstico, prescrição médica, tratamento, prevenção ou mitigação de qualquer doença humana. Não pretendem substituir a consulta ao profissional médico ou servir como recomendação para qualquer plano de tratamento. Trata-se de informações com fins estritamente educativos. Nenhuma das notas aqui presentes, neste blog, conseguirá atingir o contexto específico do paciente singular, nem doses, modo de usar etc. Este trabalho compete ao paciente com seu médico. Isso significa que nenhuma dessas notas - necessariamente parciais - substitui essa relação.
Referências _______________
[A] Quando a pessoa sofre um traumatismo físico tipo um corte, e sangra [capilares se rompem], os fatores de coagulação, que incluem bons níveis da vitamina K, entram em cena e formam o necessário coágulo, defensivo, detendo o sangramento em tempo curto. Quando a pessoa não tem seus fatores de coagulação em ordem, incluindo a K, ela dispenderá mais tempo com o sangramento, demorará mais um pouco para formar o tampão que deterá a sangria.
Por outro lado, quando não há ferimento, nem sangramento, o endotélio dos capilares e vasos impedem que o sangue em movimento coagule espontaneamente, por assim dizer. Fatores de anticoagulação do endotélio cumprem esse papel. Esses fatores é que são inibidos pela homocisteína alta, daí a pessoa passa a formar facilmente microcoágulos por conta da hiperhomocisteinemia.
[B] UEHARAL, S, 2005. Possíveis mecanismos trombogênicos da hiper-homocisteinemia...” Rev. Nutr. vol.18 no.6 Campinas Nov./Dec. 2005 http://dx.doi.org/10.1590/S1415-52732005000600005]
[C] Coagulação e sua cascata é um tema complicado. Há vídeos interessantes para quem tenha interesse. Alguns exemplos:
Vídeo sobre a cascata de coagulação: Secondary Hemostasis: Coagulation Cascade Animation [Made Easy] [11 minutos]
Ou, em forma de animação, aqui: Platelet Activation and Factors for Clot Formation [2 minutos]
Ou, mais didaticamente, aqui [1 minuto]:
[D] ORZECHOWSKA-PAWILOJC, A, LEWCZUK, A, 2005. [The influence of thyroid hormones on homocysteine and atherosclerotic vascular disease] [Article in Polish] Endokrynol Pol . 2005 Mar-Apr;56(2):194-202. “Several reports have appeared in the literature proving that hypothyroidism is associated with increased risk for cardiovascular disease, especially coronary heart disease. This increased risk for premature atherosclerosis is supported by autopsy and epidemiological studies in patients with thyroid hormone deficiency. Hypothyroid patients have increased diastolic blood pressure (as a result of increased systemic vascular resistance), altered lipid profile (elevated levels of total cholesterol, LDL-cholesterol and apolipoprotein B). More recently homocysteine, C-reactive protein, increased arterial stiffness, endothelial dysfunction and altered coagulation parameters have been recognized as a "new" risk factors for atherosclerosis in patients with thyroid hormone deficiency. The plasma total homocysteine concentration, an independent risk factor for atherosclerosis, is moderately elevated in overtly hypothyroid patients and it decreases with thyroid replacement therapy. Several experimental study have shown that hypothyroidism affects folate metabolism and the enzymes involved in the remetylation pathway of homocysteine (particularly 5,10-methylenotetrahydrofolate reductase - MTHFR). In hypothyroid condition the hepatic activity of flavoenzyme - MTHFR, is decreased. Thyroid hormone may affect the availability of FMN and FAD - necessary for stabilizing MTHFR. An impairment of enzyme involved in transsulfuration pathway is suggested. The increased serum creatinine level in hypothyroidism probably reflects a reduced glomerular filtration rate, which is linked to impaired renal homocysteine clearance and hyperhomocysteinemia.
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